/1998: A Privatização da Privatização

Data: 
29/12/1998
Autor: 
*Luiz Pinguelli Rosa

O fim do ano foi marcado pela divulgação de fitas gravadas, embora ilegalmente, com conversas sobre as privatizações. A saída do Ministro das Comunicações, levando de roldão o presidente do BNDES, cargo antes ocupado pelo Ministro, não resolveu o problema.

O fato em si apenas confirma o que se sabia: o processo das privatização foi e é uma esculhambação, que fere a imagem do BNDES como órgão da administração pública.

O processo de privatização acelerado em 1998, como foi conduzido, só podia dar nisso, pois tratou o patrimônio da Nação como se trata um negócio particular entre agentes privados. Se de um lado há a propalada eficiência privada, de outro há um jogo com pressões psicológicas e blefes usuais no poquer, nos cassinos e nos negócios entre empresas, mas que não podem ocorrer na adminstração pública. O próprio conceito de preço depende das subjetividades do vendedor e do comprador, tornando difícil ser ético nos negócios públicos e ao mesmo tempo jogar o jogo dos negócios privados. Houve a privatização do processo de privatização.

É por esta razão que os EUA mantêm até hoje em poder do setor público uma capacidade instalada em usinas hidrelétricas maior do que o total do Brasil. Os EUA não privatizaram suas empresas elétricas. Eles expandiram a geração elétrica privada mais do que a pública. Esta é uma forma de privatizar sem vender as empresas estatais.

A venda do patrimônio de dezenas de bilhões de dólares em pouco tempo por um governo difícilmente pode ser séria. Portanto não basta descarregar a culpa em bodes expiatórios e deixar o processo continuar como vem ocorrendo. São duas faces da mesma moeda o que se viu nos jornais num mesmo dia: o Ministro das Comunicações, descabelado e depondo no Senado, levando e dando tiro para todo lado, e o Ministro da Fazenda, bem penteado, ao lado do big boss do FMI, como se nada estivesse acontecendo. Um ministro faz o papel de Mandrake e o outro de Lotar. Um resolve tudo paralisando as pessoas com um gesto das mãos, hipnótico, e outro cai de cacete em quem não for paralisado e ousar enfrentar. Imagem pior é a do médico e do torturador na repressão: um aconselhava o preso político a confessar se não o outro batia. De fato, os economistas neoliberais, aliás os do Governo são engenheiros travestidos de economistas, ficarão na história como ficaram os militares da ditadura pelo seu autoritarismo violento.

Deram a alguns a missão de executar um serviço sujo, violento, ficando os outros posando de bonzinhos. Para sermos coerentes devemos condenar todo o pacote, as privatizações, a política econômica de endividamento crescente do Governo e o pacote do FMI aprovado no apagar das luzes de 1998. Sou contra as privatizações feitas, mas haveria processos melhores de privatizar. Ao invés de um "leilão" de poucos compradores, organizados em consórcios adrede preparados, estimulados pelo Governo, que é o vendedor supostamente neutro, deveria ser adotado um processo transparente e explícito. Uma possibilidade seria a pulverização das ações para o público, como ocorreu na Inglaterra, procurando criar uma administração da empresa sob controle de uma entidade como os fundos de pensão, associados a grupos privados. Outra possibilidade seria criar um núcleo de controle da empresa com empresas convidadas a se associarem por um acordo de acionistas com objetivos transparentes, mantendo alguma presença do Governo na direção, como no "noyau dur" da Elf Aquitaine francesa.

O Instituto Ilumina, que reúne engenheiros do setor elétrico, tem discutido a primeira destas alternativas. Mantivemos um debate durante o Governo Itamar no Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ. Dele participou ativamente Betinho, que defendia o caráter de empresa pública mesmo após a privatização. Este ponto permanece atual pois discute-se a privatização de Furnas do mesmo modo, à base de esculhambação.

A COPPE, por solicitação de Comissão da Câmara Federal, da Justiça ou de Procuradores da República, fez estudos sobre as privatizações, desde a Light e a Vale do Rio Doce, até o Sistema Telebras e a Eletrosul, ambos em 1998. Verificou - se o uso de índices de risco, típicos de restaurante, reduzindo os preços nos leilões destas últimas e a redução em bilhões de toneladas das reservas minerais da Vale. O que aconteceu em 1998 remete aos argumentos que levantei na época da privatização da Vale do Rio Doce sobre a ligação entre a Merill Lynch, contratada pelo BNDES para preparar a venda da Vale, e a Anglo American, forte candidata à compra. Após a polêmica causada pela divulgação do nosso estudo, o governo, por coincidência ou não, deu uma guinada e estimulou a entrada do consórcio da CSN.

Critiquei um sistema que leva a uma relação indesejada entre o setor público e o setor privado. Esta tem sido a regra geral nas privatizações. Basta examinar a história recente do país. Infelizmente 1998 confirmou isto. O balanço não foi favorável ao consumidor, desde os apagãos da Light e da Cerj no Rio, no início do ano, até o caos das administrações das empresas de Telecomunicações reveladas pela Folha agora em dezembro.

*Vice-Diretor da COPPE/UFRJ