/A Dívida das Concessionárias Elétricas com os Consumidores

Data: 
16/07/2001
Autor: 
*Luiz Pinguelli Rosa

O plano emergencial divulgado no início de julho pelo governo jogou todo o custo da crise nas costas dos consumidores, dando vantagens enormes aos grupos investidores no setor elétrico e aumentando o valor normativo da geração, o que implicará em aumento de tarifa, já alta. A lógica é atrair o capital privado ao invés de fazer o investimento público. Em resposta à crítica de Lula, o presidente Fernando Henrique declarou que este estava isolado, mas ocorre o contrário. Tenho conversado com muita gente, inclusive industriais, como o Antônio Ermírio de Moraes, que expressam descontentamento. Este quadro lembra “O Alienista”, de Machado de Assis, cujo protagonista achava que todo mundo estava alienado. No final, constatou que o problema era com ele.

A crise de energia elétrica não é apenas uma crise de energia, ela é uma crise do modelo econômico, no que diz respeito às restrições de investimentos públicos e à privatização, restrita à venda de ativos das estatais, sem atenção à expansão da oferta de energia. Alguns que saíram agora em defesa do modelo, dando a crise como um fato conjuntural, exibem argumentos cientificamente incorretos. O argumento da falta de chuvas ser responsável pela crise é um deles, já rejeitado e repetido ad nauseam, volta a ser usado. Afinal, pagamos caro para ter os reservatórios destinados a acumular água para os períodos mais secos.

A defesa da desvinculação entre o modelo econômico e a crise elétrica quase se resume à defesa da prioridade absoluta ao controle das despesas públicas, em função da política monetária, dando legitimidade às restrições do FMI, recentemente declaradas publicamente na imprensa. Partindo deste pressuposto, decorre que, não fossem as restrições de investimentos públicos em infra-estrutura, seriam necessários cortes piores em saúde, educação etc. para cumprir as metas da política monetária e do FMI. Ou seja, o racionamento de energia seria o preço a pagar pelos gastos sociais do governo, o mal menor. Ocorre que os investimentos na área social não foram lá essas coisas comparados aos gastos do governo com o sistema financeiro, como socorro a bancos quebrados, coberturas de manobras cambiais, decorrentes do modelo de gestão da economia.

Enfim, este mix de argumentações, que misturam tarifas de ônibus de São Paulo com crise de energia elétrica nacional, é análoga ao construtor do Palace II, prédio que desabou no Rio matando alguns moradores, alegar que poderia ter sido pior se o Palace I caísse também. A privatização do setor elétrico ruiu, como o Palace II. Esta história da prioridade absoluta ao controle da inflação a qualquer custo, simbolizada pelo ministro Malan no Brasil e por Cavallo na Argentina, se assemelha a um desastre em que, para salvar uma vítima com o pé preso por um desabamento, se remove um pilar fazendo desabar uma viga sobre a cabeça da vítima, que acaba com os pés livres mas com a cabeça esmigalhada. Felizmente os bombeiros não fazem isso pois sabem que para salvar vidas é preciso ter critério e agir com cuidado. É preciso controlar a inflação sem matar o desenvolvimento.

A Lei de Diretrizes Orçamentária para 2002 foi votada pela maioria da base do governo, em bloco, como se não houvesse a crise de energia. Pelo contrário, em relação ao ano de 2001, o número de programas voltados para energia caiu de 9 para 4 em 2002 e o número de ações desagregadas no setor caiu de 39 para 9. Também mantém-se a exigência de superávit das estatais, de R$5 bilhões. As empresas elétricas, Furnas e a Eletrobrás têm recursos próprios para investir mas o governo não os autorizou.

Há uma bomba de efeito retardado na crise de energia elétrica decorrente da política econômica do governo. Trata-se de um passivo contábil entre as geradoras elétricas, a maioria ainda estatal, e as distribuidoras, a maioria privatizada e controlada por grandes grupos estrangeiros com trânsito na área econômica e enorme capacidade de influir. Esta é a única explicação possível para a extrema benevolência com que são tratadas as concessionárias elétricas na medida provisória do racionamento. Estas poderão ganhar dos dois lados. Pelo chamado Anexo 5 dos contratos de concessão, as geradoras, a maioria federais, leia-se pois os contribuintes, deverão ressarcir parte do corte de energia contratada pelas concessionárias de distribuição ao preço do Mercado Atacadista de Energia (MAE), que é altíssimo neste momento. O total poderá chegar a bilhões de reais. Por outro lado, a medida provisória do racionamento pela combinação dos seus artigos 14, 15, 20 e 28, admite que parte dos recursos das sobretarifas será destinado a garantir o equilíbrio econômico das concessionárias, ou seja, a lucratividade delas. As sobretarifas foram adicionadas para reprimir o consumo e cumprir metas de cortes, incluindo expressivo número de famílias de renda modesta com consumo acima de R$100/kWh.

As famílias pagam uma tarifa já alta para terem energia garantida não interruptível. Os consumidores tiveram rompido seu contrato, feito em seu nome pelo poder concedente, que é o governo federal, e, ademais, já estão pagando mais caro por uma energia não garantida e interruptível. A lei de concessões, feita para regulamentar a Constituição, estabelece que é dever dos concessionários garantir a continuidade do serviço e sua expansão, o que não está sendo cumprido. Cabe, portanto, aos consumidores cobrarem das concessionárias a energia cortada deles. Foram cortados em média 20% do consumo, exceto nas regiões Norte e Sul. As demais regiões totalizam 80% do consumo nacional, ou seja, cerca de 240 milhões de MWh. Com o preço da energia no MAE, de US$ 300/MWh, a importância devida pelas concessionárias aos consumidores, correspondente a um mês de cortes, já seria de US$ 1,2 bilhões, descontando a parcela das regiões Sul e Norte, que ainda têm energia disponível. Se os cortes forem estendidos a um ano, mantidos os valores atuais, será de US$ 144 bilhões a dívida das concessionárias para com os consumidores. Isto por eqüidade com o pleito delas com as geradoras, que recai no Tesouro, logo nos contribuintes. A decisão do Supremo Tribunal ao julgar politicamente como constitucional a medida provisória do racionamento não revogou o código de direito civil. Afinal, nada que é legal pode ser inconstitucional, mas a lei especifica dentro de limites aquilo que a Constituição dispõe em termos gerais.

Parece que a crise está servindo para dar altos lucros a poucos em detrimento do prejuízo de muitos. Para atrair investimentos privados às pressas foram dadas vantagens antes negadas, agora justificadas pela escassez de energia elétrica artificialmente criada. Na Califórnia está - se apurando que houve um lock out por empresas geradoras para criar escassez e subir preços, que lá deixaram as distribuidoras em dificuldades, obrigadas a cumprirem seus contratos de concessão até o limite de quase quebrarem, ao contrário do Brasil onde quem vai quebrar é o consumidor.

*Coordenador do Instituto Virtual de Mudanças Globais e Vice-diretor da COPPE