/A Privatização de FURNAS
A proposta do Governo de rever o processo de privatização de Furnas traz embutida um reconhecimento implícito do fracasso do programa brasileiro de privatização de serviços públicos. O programa foi incapaz de evitar a desnacionalização da economia; o fechamento do capital das empresas, com efeitos nefastos sobre o mercado de capitais brasileiro e a perda das condições das empresas de competirem no mercado internacional em função da sua cisão e, principalmente, de garantir uma melhora na qualidade dos serviços no ritmo esperado.
Manter este modelo de privatização para Furnas seria um equívoco ainda maior. Furnas possui uma capacidade de investimento invejável. Nos últimos quatro anos a empresa investiu cerca de R$ 3,3 bilhões, sendo cerca de 72% com recursos próprios. O reduzido nível de captação de recursos de terceiros é fruto de restrições impostas pelo próprio Governo. Desta forma, hoje o nível de endividamento (empréstimos e financiamentos/patrimônio líquido) é de apenas 13%, enquanto nas empresas similares norte-americanas é de cerca de 60%. A capacidade de geração de caixa e o baixo nível de endividamento dão a empresa uma capacidade excepcional de alavancar novos investimentos.
A importante capacidade de Furnas em gerar recursos próprios é fruto, em grande parte, da existência de usinas já amortizadas, com custo de geração muito baixo, tais como, por exemplo: Marimbondo - 3,5 R$/MWh, Furnas - 5,6 R$/MWh, Luiz Carlos Barreto - 5,5 R$/MWh, Mascarenhas de Moraes - 5,3 R$/MWh, enquanto o custo marginal de expansão do sistema já ultrapassa os 45,0 R$/MWh. Ao se vender as usinas já amortizadas pelo fluxo de caixa descontado, estariam sendo transferidos estes recursos para o tesouro, provavelmente para pagar juros, quando eles são fundamentais para a manutenção, e, principalmente, expansão do sistema elétrico brasileiro.
O novo modelo proposto para a privatização de Furnas consiste em um avanço importante do governo por evitar a cisão de Furnas e que seu controle fique restrito a um pequeno grupo de sócios, contudo, não garante que os investimentos necessários ao setor sejam realizados. Com efeito, a experiência mostra que as empresas privatizadas têm sido bastante generosas com seus acionistas. A CEMIG se constitui em bom exemplo deste comportamento. Como bem demonstra trabalho que vem sendo elaborado pela COPPE/UFRJ, nos exercícios 1997 e 1998, período em que o "sócio estratégico" - a Southern Electric e a AES - exerceu, juntamente com o Estado de Minas Gerais, o controle societário da CEMIG, a soma dos dividendos distribuídos foi superior à soma dos lucros líquidos alcançados nesses exercícios, representando uma importante drenagem de recursos da empresa.
É claro que no caso da pulverização das ações o governo poderia utilizar o poder dado pela golden share (ação especial com direito a veto) para controlar o pagamento de dividendos a um valor próximo ao mínimo legal e com isso canalizar mais recursos para o investimento na expansão da geração. Contudo, será que é esta a expectativa dos milhões de acionistas ao usarem sua poupança ou o FGTS para aquisição das ações da empresa? Além disso, os recursos arrecadados com a venda das ações iriam para o Tesouro, provavelmente para pagar os juros da dívida interna, e não para expansão do setor elétrico. Preocupa ainda o fato de que ao contrário do que vem sendo difundindo a golden share adotada na privatização do setor elétrico inglês não impediu que em 1995, ao final de sua vigência, as empresas americanas tomassem o controle das empresas inglesas privatizadas. Esta indiferença do governo inglês com a tomada de controle de suas distribuidoras por empresas estrangeiras, contrasta com vários outros países europeus que começaram a liberalizar o mercado mas não permitiram que a posição das grandes empresas sofresse deterioração. Estes países garantiram assim a existência de empresas nacionais que pudessem ser representantes no mercado elétrico internacional, como o caso da Verbund na Áustria, EDP em Portugal e Endesa na Espanha.
Existem duas alternativas à proposta do governo que assegurariam que Furnas faça os investimentos indispensáveis ao país. A primeira alternativa seria a de se utilizar a capacidade de geração de caixa de Furnas e de sua expressiva potencialidade de alavancagem financeira para atrair investimentos do capital privado, na forma participação conjunta (participação societária (equity) em novos projetos de expansão. Existem diversos exemplos de parcerias bem sucedidas no País, tais como as usinas de Serra da Mesa e Machadinho. O nível da participação do capital privado poderia ser discutido em cada caso, conforme a conveniência específica.
A segunda alternativa, mais próxima da proposta pelo governo, seria que Furnas fizesse uma chamada de capital, aumentando a participação de capital privado na empresa. Esta alternativa permitiria que os recursos da venda das ações revertesse para a empresa e não para o Tesouro conforme o modelo proposto pelo governo. A venda de ações poderia ser pulverizada conforme atualmente proposto pelo governo, contudo criando mecanismos que evitem a tomada de controle da empresa através da compra das ações dos minoritários após a venda inicial. A capitalização de Furnas permitiria que a entrada dos recursos privados fossem canalizados para a expansão do sistema, medida esta vital para se evitar a falta de energia que hoje ameaça a retomada do crescimento econômico.
*Doutor em Economia pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (Paris), Coordenador do Programa de Planejamento Energético da COPPE/UFRJ, Presidente da Sociedade Brasileira de Planejamento Energético.