/Ciências, Tecnologias e Engenharias: palavras femininas, ações não necessariamente do mesmo gênero

Data: 
23/07/2003
Autor: 
*Eduardo Nazareth Paiva

Nos anos 60 e 70, lembro-me de uma brincadeira comum nos ambientes acadêmicos tecnológicos, propalada na forma de uma jocosa lenda, segundo a qual a mulher, quando concebida pelas instâncias superiores, era levada a decidir sobre se ela gostaria de ser forte, inteligente e engenheira ou se ela preferiria ser bonita, graciosa e com isto ter que escolher uma outra carreira mais "condizente" com a sua condição e os seus dotes femininos.

Os números, como costumam dizer os cientistas, "não mentem" e eles consolidavam esta visão. Era fácil, em termos estatísticos, constatar que as mulheres eram uma minoria incontestável na grande parte dos cursos de Engenharia de então. Elas se constituíam numa espécie de exceção à regra de que Engenharia era coisa para homem.

Mais especificamente aqui na COPPE, nos seus primeiros momentos destes emblemáticos anos 60 e 70, a situação não era, significativamente, diferente. Entretanto, ao longo do tempo que fluía rumo ao terceiro milênio, os números em relação às mulheres não ficaram, por assim dizer, sossegados, estabilizados. Muito pelo contrário, eles começaram a apresentar um comportamento até certo ponto revolucionário (sei que a palavra anda meio combalida, mas achei que não existia outra melhor para designar, quem sabe, a mudança em que talvez o homem, tal qual o Sol na revolução copernicana, deixa de ser o centro).

O fato é que os números começaram a apresentar uma tendência de alteração do quadro, então vigente, de predominância estável dos quadros masculinos, configurando assim uma outra situação, qual seja, uma tendência ao aumento do efetivo feminino no corpo social de nossa instituição. Foi assim que assistimos, durante as décadas de 80 e 90, uma virtual alteração daquela conjuntura de dominação segura do efetivo masculino, ou seja, a participação das mulheres tem crescido tão substancialmente no nosso quadro social que apresenta-se como quase "natural" a ocupação, pelas mulheres, de lugares de destaque na hierarquia institucional.

E então? Tudo bem? Isto trará alguma conseqüência para o etos das Ciências, das Tecnologias e das Engenharias? Estaria a COPPE na vanguarda desta nova conjuntura, ou ela já se apresenta em curso regional, nacional e mesmo internacionalmente?
No último debate para as eleições da nova diretoria da COPPE fiz uma pergunta sobre a questão do gênero, da qual relembro que a sua introdução foi feita através de uma problematização que envolve uma mudança na descrição biológica da fecundação humana. Até o final dos anos 80, o espermatozóide mais apto perfurava a parede do óvulo. Já nos anos 90, o óvulo atrai, seleciona o espermatozóide e, em seguida, a sua parede absorve o “escolhido”. Obviamente, são duas visões sobre a questão da fecundação humana, cheias de influências de gênero. (Sobre esta questão ver Martin, Emily. “The Egg and the Sperm: How Science has Constructed a Romance Based on Steriotypical Male-Female Roles” in Sign: Journal of Women in Culture and Society, 16/3 (1991). The University of Chicago Press).

Sem dúvida já não são tão poucos os que consideram que, por exemplo, algumas práticas científicas e tecnológicas podem ser vistas como possuidoras de um etos masculino (as pesquisas bélicas, os modelos econômicos e de produtividade de alta escala, as estratégias energéticas que exigem alto poder de concentração e hierarquia para se tornarem viáveis, as soluções mais globais para construção de um mundo melhor, etc) ou de um etos feminino (as deliberações não belicistas por parte das instituições de pesquisa, as economias solidárias de pequena escala, os modelos energéticos alternativos mais distribuídos e com menos exigências hierárquicas, as soluções mais locais para a construção de uma solução situada, etc).

Assim, sendo a nossa instituição uma organização representante da Inteligência Nacional, o que poderíamos esperar, na ocasião do debate, dos postulantes aos cargos na futura Diretoria da COPPE, em relação a estas questões de gênero? Pelo que pude depreender das respostas das duas chapas, em relação a estas questões, elas foram, digamos assim, pragmáticas e pontuais. Ambas as chapas respondentes acabaram reafirmando um compromisso da COPPE de não realizar pesquisas de caráter bélico. Mas existem outros aspectos, além do bélico, a serem considerados visitados.

Ainda que saibamos que a envergadura dos problemas institucionais é de tal ordem que eles acabam encobrindo os considerados problemas "menores", achamos profundamente recomendável, especialmente aos gestores desta instituição, dedicar uma atenção especial aos processos de mudança em curso. As questões de gênero, embora atualmente ainda possam ser consideradas extemporâneas, desembocam em tendências que poderão levar a simbólicos eclipses de alguns paradigmas, atualmente vigentes, construídos pela ordem, eminentemente de etos masculino, estabelecida e mantida ao longo de muitos e muitos anos de predominância do WASP (protestante anglo-saxão branco) macho (sobre esta questão ver, por exemplo, Haraway, Donna. 1991. Simians, Cyborgs, and Women – The Reinvention of Nature. Nova York: Routledge). Mas, não poderia o ocaso do poderio machista WASP, mesmo que engendrado no primeiro mundo, abrir novas possibilidades para o terceiro?

Assim, longe de se estar completamente à vontade, compreendemos que estas reflexões sobre as questões de gênero, ao mesmo tempo em que acalmam aos que se sentem confortáveis nesta nova perspectiva mais feminina, elas também inquietam aqueles que, quando muito, consideram que movimento feminista seja apenas mais um movimento dos quadris de alguma representante do sexo frágil.

Escrevo estas linhas em consideração àquelas pessoas que me procuraram pedindo que eu tentasse explicar melhor as minhas intenções com a pergunta que fiz no último debate entre as chapas candidatas à eleição para a Diretoria da COPPE, realizado na manhã da sexta-feira, dia 30 de maio de 2003, no auditório da Instituição.

Aproveito a oportunidade para esclarecer que a pergunta não foi só minha, eu assumi a função de porta-voz de um anseio por maiores esclarecimentos, egresso das conversas, mantidas, em segunda voz, entre aqueles que se encontravam nas cercanias de onde eu estava sentado, na ocasião. Nestas conversas subliminares, mantidas quase que ao pé do ouvido, pululavam questões como aquelas sobre se o resultado das eleições, ora em curso, seriam ou não influenciados por algum comportamento, digamos, machistas ou feministas por parte do pessoal votante.

Outra questão que fervilhava ali era sobre se a possibilidade da vitória de uma chapa com mulheres na sua "cabeça" poderia significar uma alteração no estilo e na lógica de funcionamento desta já balzaquiana instituição. Ou seria a nossa instituição efetivamente neutra em relação às questões de gênero? Haveria alguma relevância ou conveniência em levantar a questão da existência (ou não) de gêneros nas Ciências, nas Tecnologias e nas Engenharias? Existiriam Engenharias mais femininas e outras mais masculinas?
Por fim, gostaria de deixar mais algumas reflexões sobre as Ciências, as Tecnologias e as Engenharias: elas, embora femininas em seus nomes, constituíram-se masculinas em suas ações por questões eminentemente conjunturais? Estaria esta conjuntura de fato mudando, ou seria apenas uma alteração passageira sem maiores conseqüências? Ou tudo nas Ciências, nas Tecnologias e nas Engenharias é neutro, sem polaridade, sem lado, sem gênero e sem sociedade?

P.S. Agradeço ao apoio recebido do Prof. Ivan da Costa Marques, com quem eu burilei este texto.

*Eduardo Nazareth Paiva é funcionário da COPPE

nazareth@cos.ufrj.br