/Internet gratuita para quem?
Estamos vivendo na era do conhecimento, uma era caracterizada pelo uso intensivo das tecnologias de informação e comunicação. Estudos da OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico) e do Banco Mundial indicam que, em 2001, mais de 60% da riqueza mundial foi criada pelo conhecimento. Segundo o Banco Central do Brasil, o Brasil gastou em 1999 mais de 2 bilhões de dólares com os chamados 'ativos intangíveis': software, royalties, consultoria e patentes sem contar a tecnologia embutida em produtos e serviços como avião, computadores e telecomunicações, um aumento de 900% em relação a 1992!
O conhecimento é, portanto, o novo motor da economia, o seu mais importante fator de produção. Muitos já perceberam este fato, mas poucos têm conseguido tirar conseqüências econômicas desta nova realidade.
Exemplo desta incompreensão é o debate sobre a internet gratuita. O modelo de negócios adotado pela maioria dos provedores gratuitos de internet procura tirar proveito de uma distorção nas regras de remuneração definidas para as companhias de telecomunicações. Este modelo toma por base o tráfego de voz. As características do tráfego de voz fazem com que, independente da quantidade de clientes em cada concessionária de telefonia, exista um equilíbrio no tráfego entre elas. No tráfego de internet, ao contrário, existe forte desequilíbrio, com fortíssima concentração do tráfego em apenas uma direção (o chamado sumidouro de tráfego). Boa parte dos provedores de internet gratuita procuram se aproveitar deste desequilíbrio para se viabilizarem economicamente. Se aproveitam assim do vácuo regulatório advindo da falta de definição de uma regra clara para o tráfego de dados.
Para entender como isto funciona, consideremos o exemplo de um usuário médio de internet. Segundo pesquisas efetuadas pelo CRIE (Centro de Referência em Inteligência Empresarial) da COPPE/UFRJ, se este usuário entrar na rede durante uma hora por dia no período noturno dos dias úteis e nos fins de semana (mais de 50% do tráfego de internet se enquadra nesta situação), o valor que o cliente pagará a empresa concessionária de telefonia no final do mês será de R$ 2,10 (30 chamadas x R$ 0,07 por 1 pulso/chamada).*
Pelas regras atuais, baseadas no tráfego de voz, as concessionárias devem pagar às provedoras de internet (que originaram o tráfego), R$ 0,05/minuto, independente do horário, para cada minuto que exceder os 55% do tráfego total entre elas. No nosso exemplo, a concessionária deverá pagar a operadora de internet, que originou o tráfego, R$ 40,50 (45% x 30 horas x 60 minutos x R$ 0,05/minuto)! Um prejuízo de R$ 38,40 por cada cliente da operadora de internet que se utilizar da rede das concessionárias de telefonia.
Como o prejuízo não foi causado pela incompetência das concessionárias de telefonia, esta pode compensar o prejuízo com aumento nas tarifas de telefonia, segundo o Contrato de Concessão de Serviços.
O resultado é que todos os usuários acabarão pagando para que alguns possam se utilizar da internet “gratuita”. E quem são estes beneficiários? Segundo dados da ANATEL, a internet é utilizada por 70% da classe A, 35% da classe B, e apenas 10% da classe C e 4% da classe D. Ao mesmo tempo, a penetração do telefone fixo é de 99% na classe A, 93% da classe B, 74% da classe C e 43% da classe D. Ou seja, sem o preenchimento do vácuo regulatório, com a definição de regras para o tráfego de dados, os custos da internet “gratuita” serão pagos majoritariamente por usuários de serviços de telecomunicações que não fazem uso da internet: as classes C e D, que correspondem a mais de 60% dos usuários de telefonia.
A conclusão apressada do exposto é que a internet gratuita não é viável, o que não é verdade! O que não é viável é este perverso modelo “Robin Hood às avessas”: que tira dos pobres para beneficiar os ricos. Além de perverso, o modelo erra ao não perceber que o “filé mignon” da internet é prover serviços de valor agregado e não apenas acesso. Por que os bancos, por exemplo, deveriam cobrar o acesso à internet de seus clientes, se ao pagar as contas, investir num fundo, imprimir extratos ou consultar o saldo via internet estamos trazendo uma enorme economia para estas instituições? Garantir acesso universal à internet também é do interesse dos governos, que poderão prestar serviços de melhor qualidade com menor custos.
O futuro da internet gratuita é promissor. O que precisamos é de um outro modelo que estimule a inovação e faça as concessionárias de telefonia compreender que seu “negócio” não é prover apenas linhas telefônicas ou acesso à internet mas serviços de valor agregado para seus clientes. Este novo modelo deverá estimular a competição e permitir que os custos com telefonia caiam. O acesso à internet deverá ser gratuito não por decreto nem por imperfeições da legislação, mas porque ficará claro que o valor para os usuários está nos serviços prestados e não apenas no meio utilizado. Ninguém compra um telefone por amor ao aparelho mas para poder falar com outras pessoas, enviar e receber dados e informações. No momento em que isto estiver claro para todos e o modelo permitir, teremos acesso gratuito à internet, com pagamento dos serviços utilizados.
O modelo na área de telecomunicações nos trouxe até aqui mas precisamos avançar, preenchendo o vazio na regulamentação do tráfego de dados. O que não se deve é manter um modelo que já se revelou claramente inadequado para regular este tráfego. O mal do governo não é a falta de persistência mas a persistência na falta, como diria o saudoso Barão de Itararé...
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*Lembramos que a duração do pulso é de duração ilimitada no período noturno dos dias úteis e nos fins de semana.
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Marcos Cavalcanti é coordenador e professor do Crie (Centro de Referência em Inteligência Empresarial), do Programa de Engenharia de Produção da COPPE/UFRJ, e co-autor do livro Gestão de Empresas na Sociedade do Conhecimento.