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/Carlos Portela: o mestre da engenharia elétrica que optou pelo Brasil

Carlos Manuel de J. C. de M. Portela é um cidadão do mundo. A trajetória de vida deste mestre da engenharia elétrica confunde-se, em alguns momentos, com fatos que marcaram a história de Portugal, África e Brasil. No setor elétrico, onde seu nome dispensa apresentação, é reconhecido pela capacidade técnica e determinação com que sempre conduziu grandes projetos, no Brasil e no exterior. “Life Fellow” do IEEE – Institute of Electrical and Electronic Engineers, foi agraciado pelo Presidente da República do Brasil com a Grã-Cruz da Ordem do Mérito Científico, em 2007.

Professor da Coppe desde 1977, Portela orientou cerca de 50 dissertações de Mestrado e teses de Doutorado, assinou mais de 170 artigos publicados em periódicos e anais de congressos, nacionais e estrangeiros, e é autor de seis livros. Amante convicto do trabalho, mesmo após ter se aposentado, em 2003, ainda vem à universidade duas vezes por semana, onde dá aulas e orienta alunos de Mestrado e Doutorado. Em sua casa, na Barra da Tijuca, onde mora há 15 anos, possui um escritório com computadores que funcionam em rede. É lá que desenvolve seus atuais projetos e mantém-se ligado ao tema sobre o qual dedicou toda a sua vida: a engenharia elétrica.

Nascido em Angola, em 1935, na cidade de Sá da Bandeira, hoje denominada Lubango, o professor Carlos Portela permaneceu pouco tempo no continente africano. Aos sete anos, seguiu para Portugal com os pais, Joaquim e Zulmira Portela, que preocupados em oferecer ao filho uma boa educação, resolveram se mudar para Lisboa. Nesta cidade, Portela concluiu sua formação acadêmica: aos 22 anos formou-se em engenharia elétrica pelo Instituto Superior Técnico da Universidade Técnica de Lisboa, um curso de seis anos, e em seguida ingressou no doutorado, na mesma instituição, que concluiu em 1963. Foi também em Lisboa que, ainda na faculdade, conheceu Elsa, com quem casou - se e teve dois filhos, Irene e Luís.

Antes de completar dez anos de idade, Portela já tinha decidido seu destino: queria ser engenheiro. Aos sete anos, ao viajar de navio da África para Portugal, durante a Segunda Grande Guerra, resolveu indagar os oficiais da Marinha como barcos pesados de ferro conseguiam flutuar na água. “Só parei de fazer perguntas quando me deram todas as explicações”, afirmou o engenheiro, que até hoje tem essa viagem marcada em sua memória. “A expectativa de que o barco pudesse ser abordado por navios de guerra ingleses ou por submarinos alemães, nos fez vivenciar certo clima de aventura”, relembra o professor.

Do terrorismo ao bloqueio econômico: desafios enfrentados com conhecimento

Antes mesmo de se formar, Portela começou a trabalhar como professor assistente no Instituto Superior Técnico da Universidade Técnica de Lisboa. Mais tarde, por concurso, tornou-se professor catedrático. Paralelamente, ao graduar-se em engenharia elétrica, ingressou na Companhia Portuguesa de Eletricidade, local onde ocupou praticamente todos os cargos de direção, de 58 a 75, e enfrentou inúmeros desafios. O primeiro deles, foi quando o Presidente da Companhia, Ferreira Dias, que mais tarde veio a ser Ministro da Economia, o procurou para saber sua opinião sobre um dilema: construir ou importar um computador analógico para simular o funcionamento das redes elétricas. Portela respondeu que era melhor construir e, dois anos depois, em 1960, inaugurou o primeiro computador construído no país para simulação de redes. “Ficou melhor do que os que eram oferecidos no mercado e custou muito mais barato”, afirma Portela, que ainda como chefe do centro de cálculo foi responsável pela aquisição dos primeiros computadores digitais da empresa.

Mas os momentos mais difíceis enfrentados por Portela na companhia ocorreram quando era responsável pela operação da rede. Lembra-se de quando as torres de linhas de energia elétrica foram dinamitadas por terroristas para impedir o abastecimento de energia da cidade e inviabilizar a realização de uma reunião da OTAN, que seria realizada em Lisboa. “Isso aconteceu em plena ‘Guerra Fria’. Os terroristas queriam demonstrar poder. Nossa sorte é que foram mal preparados”, brinca o engenheiro, relatando com orgulho o fato de terem conseguido manter a operação, mesmo com algumas torres tombadas e reconstruído, em menos de 24 horas, as linhas atingidas.

Portela também enfrentou na década de 70 o boicote dos países árabes a Portugal, em represália ao fato de Portugal ter permitido que os americanos usassem a base de Açores para transportar tropas para o Oriente Médio, durante a guerra do Canal de Suez. Os árabes interromperam o fornecimento de petróleo a Portugal, que à época tinha 25% do abastecimento de energia do país baseado em geração termelétrica. Para manter o país iluminado e a atividade econômica, e não ter que impor à população um racionamento, a solução encontrada por Portela foi mudar o critério da operação, sobrecarregando as linhas de transmissão, com o aumento de carga dos transformadores, e permitindo acesso a fontes alternativas de energia elétrica. “Em alguns casos duplicamos a carga. Mas fizemos tudo com segurança, sem danificar nada”, recorda o engenheiro.

O retorno à África e a opção pelo Brasil

No início dos anos 70, o Ministério do Ultramar solicitou à companhia portuguesa a atuação de Carlos Portela em um projeto desafiante: viabilizar a construção da usina hidrelétrica de Cabora Bassa, em Moçambique, que inicialmente produziria 4000 MW. Como Moçambique não tinha capacidade de consumo à escala da usina, era preciso achar uma forma de financiar o projeto. A solução encontrada foi construir uma linha de transmissão de 1.450 km para interligar a usina construída em Moçambique à África do Sul. A maior linha de transmissão em comprimento já construída até então. O engenheiro aceitou o desafio e integrou a equipe responsável pela concepção do projeto do “linhão” que conduziria energia elétrica da África do Norte à África do Sul. O contrato com a África do Sul era de fornecimento decrescente: no princípio, importaria praticamente toda a energia gerada no momento e, com o tempo, compraria menos à medida que Moçambique começasse a crescer. O objetivo era fomentar o crescimento de Moçambique.

Às vésperas da Revolução dos Cravos, em 1975, Portugal estava em clima de ebulição. Alguns nomes de professores da universidade passaram a figurar numa lista de suspeitos, entre eles o do professor Portela que, à época, com 39 anos, assumira pouco antes a vice - diretoria do Instituto Superior Técnico e era o mais novo professor catedrático da instituição. “Foi um momento confuso. O ensino parou. Fui acusado e não tinha acesso às peças de acusação. Como podia me defender se nem sabia do que estava sendo acusado?”, ressalta.

Em 1975 Portela deixa Portugal. Optou pelo Brasil e veio direto para o Rio de Janeiro, onde começou a trabalhar numa empresa de consultoria, Ptel, criada pouco antes por uma empresa brasileira, Electra, e pela empresa americana PTI - Power Technologies Incorporated, na qual, mais tarde, chegou a ser diretor.

O Brasil vivia um período de grandes investimentos em infraestrutura. Mas o primeiro grande projeto do engenheiro no país acabou não vingando. A empresa na qual trabalhava fez o estudo para a eletrificação da Ferrovia de Carajás, que acabou não sendo executado em virtude de uma disputa política entre a Vale do Rio Doce e sua subsidiária, a Amazônia Mineração. Mas isso não desanimou Portela que, logo em seguida, assumiu a coordenação de um estudo para a Chesf destinado à implantação da rede de interligação do Nordeste. Também foi responsável por um dos grupos do consórcio que planejou o sistema de transmissão de Itaipu. “Houve muito debate técnico. À época o Brasil tinha uma virtude que hoje não tem. O objetivo era acertar”, ressalta o professor. “Como os documentos técnicos circulavam entre os grupos, muita coisa foi corrigida, ainda na fase de projeto. Conseguimos desenvolver tecnologias específicas para as peculiaridades da usina”, afirma Portela, que à frente da empresa também conduziu projetos para outros países da América do Sul, como Argentina, Paraguai, Colômbia, e para outros países, como Áustria e EUA.

Quando já estava com a vida estabelecida no Brasil, foi surpreendido com um telefonema do chefe de gabinete do Primeiro-Ministro de Portugal, Vasco Gonçalves, pedindo desculpas ao professor pelo mal-entendido e o convidando a voltar a Lisboa e reassumir seu lugar na universidade. Chegou a lhe oferecer um ano de licença sabática como compensação pela perturbação que tinha sofrido. Portela agradeceu, mas recusou o convite. “Já estava estabelecido em outro país, tinha trazido meus filhos, meus pais e meus sogros, enfim, tinha agitado a vida de muita gente para voltar atrás”, respondeu.

Aliando o rigor acadêmico à prática

Após um ano trabalhando em empresa no Brasil, o engenheiro começou a sentir falta da universidade. “Percebi que estava perdendo o rigor. Se uma pessoa se restringe a academia, perde o contacto com o mundo, o senso de realidade. Mas se apenas atua no mercado, perde a preocupação com o rigor”, afirma. E foi com base nesse pensamento que Portela ingressou na Coppe, em 1977, instituição que tão bem traduz a associação do universo da pesquisa ao da prática.

Ao expressar o desejo de voltar à universidade, seu colega, o professor Alquindar Pedroso, o apresentou ao coordenador do Programa de Engenharia Elétrica da Coppe, à época, o professor Caloba. Desde então, Portela passou a ministrar aulas na Coppe, onde mais tarde, por meio de concurso, tornou-se professor titular. Na universidade também coordenou grandes projetos. Na década de 90, foi responsável pelos estudos e desenvolvimento de sistemas especiais para proteção contra descargas atmosféricas de oito das cerca de cinqüenta instalações do Sistema de Vigilância da Amazônia (SIVAM). Essas oito instalações foram escolhidas pelo SIVAM pelo fato de que abrigariam os equipamentos mais importantes ou estavam localizadas em locais com maior incidência de descargas atmosféricas na Amazônia, que é uma das regiões do mundo com maior densidade de descargas atmosféricas. Os sistemas de proteção concebidos para esses oito locais são totalmente fora dos padrões usuais em termos de concepção construtiva e metodologia de cálculo. “Era preciso proteger os equipamentos. Cada radar, para se ter uma idéia, custava em média 50 milhões de dólares.”, afirma Portela que discordou da solução tradicional que os integrantes do projeto queriam adotar inicialmente.

Em 2004 o professor assumiu a coordenação de um projeto para o desenvolvimento de uma Modelagem de Arco Elétrico. Trata-se de um projeto inédito, fruto de uma parceria entre Furnas, Coppe e Cepel, que tem como objetivo permitir eliminar muito rapidamente e com pequena perturbação da rede a maioria dos curtos-circuitos nas linhas elétricas das redes de transmissão, que, em grande parte, são originados por descargas atmosféricas. A proposta é modelar adequadamente o arco elétrico que resulta do curto-circuito, permitindo definir com segurança equipamentos complementares e critérios de manobra e de atuação de proteções que permitam eliminar o curto-circuito, com abertura e religamento rápidos da fase afetada. O objetivo é otimizar a relação entre a confiabilidade e o custo do sistema de transmissão de energia elétrica, possibilitando reduzir o risco de interrupções de fornecimento (inclusivamente de apagões) e minimizar substancialmente o custo.

As regras do absurdo que legislam sobre a física

Com senso crítico aguçado, grande conhecimento e experiência sobre a área adquiridos em cinquenta e seis anos de carreira, Portela mantém-se atuante no setor elétrico. É um árduo crítico do culto a normas. Segundo ele, uma peculiaridade brasileira e de alguns países europeus. “Acham que normas são feitas para serem cumpridas de forma cega. Ora, legislar sobre a física é uma idiotice! Há normas brasileiras que são disparates totais” afirma. Ao falar sobre o tema, o engenheiro lembra - se da resposta que deu aos coordenadores do Sivam ao ser indagado sobre as normas que adotaria no projeto. “Respondi de pronto: nenhuma. Vou seguir as leis da física”, relatou divertindo-se ao se lembrar do episódio. “Nos EUA, por exemplo, as normas resultam de um consenso entre especialistas, não têm papel mandatório. Quem as usa é que responde pela execução do trabalho. No Brasil é o contrário, se o sujeito mata cem pessoas, mas para isso calculou segundo as normas, não há problema nenhum. Ou seja, usam as regras para se absterem da responsabilidade,” critica.

Algumas dessas normas, por ele denominadas regras do absurdo, também foram alvo de advertências feitas recentemente pelo professor. “Mandei um documento à Aneel, relatando os “equívocos” presentes na norma sobre critério de sobrecarga de linhas e de transformadores que a agência tinha disponibilizado para consulta pública na internet. A norma está repleta de simplificações que parecem ter sido feitas ignorando ou esquecendo a realidade física. Transformaram um cálculo técnico numa planilha muito simples, uma espécie de receita de bolo, para calcular como se pode sobrecarregar as linhas e transformadores. A norma trata como idênticas condições muito diferentes, o que evidencia que a receita simplista adotada pode conduzir a erros graves, de ordem de grandeza. Propus que a norma fosse revista. Os exemplos e argumentos que apresentei não foram contestados, mas, passados uns meses, entrei no site novamente e vi que a norma foi aprovada sem nada ter sido mudado. Em reunião com o ex- diretor geral da Aneel, Prof. Jerson Kelman, em que participaram outros dois professores da Coppe, além de outras pessoas da Aneel, manifestei a minha frustação com a consulta pública. É preciso discutir objetiva e cientificamente as críticas e discordâncias, com a preocupação de acertar” , alerta.

A reunião na Aneel foi resultado de preocupação suscitada pelo recente Plano Decenal para o setor elétrico, que, na opinião de Portela, mantém e amplia grande parte dos ‘equívocos’ da evolução recente (que se arrasta ao longo de cerca de duas décadas) do setor elétrico brasileiro. “Não se está ponderando nem aproveitando adequadamente as enormes potencialidades do Brasil em termos de geração de eletricidade, nem a necessidade de otimizar adequadamente o sistema elétrico, quanto à geração e transmissão, o que conduz naturalmente a soluções inovadoras e não convencionais. O Prof. Kelman entendeu claramente a preocupação que lhe foi transmitida”, comentou Portela.

Portela e outros três professores da Coppe participaram também de uma reunião com a Empresa de Pesquisa Energética (EPE), em que tomou parte o Presidente da instituição, o professor Mauricio Tolmasquim. No mesmo sentido do que foi apresentado à reunião na Aneel, Portela manifestou preocupação com vários aspectos do Plano Decenal. “Invocando urgência de decisões, que têm que ser tomadas em quinze dias, sem tempo para estudar adequadamente os assuntos, repete-se, por mais de quinze anos, soluções equivocadas. As conseqüências podem ser muito graves e afetar a evolução econômica e social do Brasil por algumas décadas. Há necessidade de encarar racionalmente os problemas envolvidos, seguindo as regras cartesianas do método científico, sem mais adiamentos, mas sem precipitação, com bom senso e vontade de acertar”, ponderou o mestre.

  • Publicado em - 04/08/2006