/Porque as Tragédias se Repetem

Data: 
25/01/2011
Autor: 
*Paulo Cesar Colonna Rosman

Cheias e chuvas torrenciais também acontecem em países desenvolvidos, mas ali as vítimas se contam às unidades ou, quando muito, às dezenas. Aqui às centenas. Por que? A resposta, no fundo se resume em respeito à pessoa e respeito à cidadania. Lá o respeito faz com que o planejamento urbano seja uma consequência óbvia: pensa-se assim, vive-se assim, é natural o cidadão vir em primeiro lugar e considera-se que todos tenham os mesmos direitos e deveres. É impensável, é inaceitável viver em favelas e aglomerados precaríssimos. Aqui não é natural que se pense primeiro na pessoa; e a noção de cidadania e direitos iguais existe no papel, mas não está incorporada ao pensar e ao viver da nossa sociedade.

No Brasil, condomínios, centros de gastronomia e hotelaria, shoppings, marinas e similares são planejados por renomados arquitetos, projetados por competentes engenheiros, licenciados por zelosos funcionários de prefeituras e órgãos ambientais. Tais empreendimentos costumam ser bem-vistos pelo poder público, pois movimentam a economia, geram crescimento e criam oportunidades de emprego. O que a falta de respeito à pessoa ou à cidadania tem a ver com isso? No Brasil, tudo!

“Oportunidades de emprego” – aí está o x da questão. Os empregados são pessoas e são cidadãos, mas parece que isso não vale muito por aqui. No Brasil são apenas “trabalhadores”, “empregados”. Não é natural pensar neles; o poder público, reflexo da sociedade, não planeja para eles. Parece que “empregados” e “trabalhadores” são categorias à parte da humana. Quando eles afluem para as oportunidades de emprego criadas pelos empreendimentos licenciados, não se pensa onde vão morar, onde educarão seus filhos, como cuidarão de suas famílias, de sua saúde, como terão transporte para ir e vir, como terão lazer. São muitos os exemplos.

Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, onde supostamente foi tudo planejado. O poder público se esqueceu de providenciar bairros populares, com infra-estrutura adequada, saneamento, escolas, hospitais, meios de transporte, etc. para as dezenas de milhares de cidadãos que se empregam nos condomínios residenciais e comerciais e nos numerosos empreendimentos de diversos tipos que vicejam no bairro. Ou seja, não se pensou no mínimo para que as famílias dos cidadãos empregados possam viver dignamente. Resultado do esquecimento: as pessoas vão à luta e procuram sobreviver. Comunidades precárias florescem nas margens das lagoas, falta saneamento, falta escola, a poluição é descontrolada, a segurança é problemática- e por aí vai.

Região serrana do Estado do Rio de Janeiro, a inaceitável tragédia do momento. O caso é o mesmo. Sofisticados condomínios, centros comerciais e residenciais, economia florescente, milhares de oportunidades de emprego nos últimos 15 anos! Centenas de bons empreendimentos licenciados pelo poder público. Mas e os milhares de trabalhadores e empregados que afluem às oportunidades de emprego? Alguém planejou para eles? Eles fazem parte do modo de pensar e agir da sociedade organizada? Onde moram os empregados? Onde vivem esses milhares de cidadãos? Ignorados pelo poder público, espelho da nossa sociedade subdesenvolvida, eles buscam suas próprias maneiras de sobreviver em meio à precariedade.

Nas cidades serranas, os condomínios planejados, os centros residências e comerciais licenciados foram construídos em áreas que eram seguras. Eram seguras. Eram, antes de os cidadãos empregados, por conta própria e necessidade de sobreviver, construírem suas casas em locais inadequados mais acima do rio, mais no alto das encostas. Vem a chuva intensa e, nas encostas fragilizadas pelas ocupações não planejadas, ocorrem os primeiros deslizamentos, que barram o rio. Forma-se um lago temporário. A barragem temporária rompe-se e desce uma avalanche devastadora, súbita, sem deixar chances de sobrevivência. Na raiz de tudo, a falta de respeito à cidadania. A sociedade é vítima de sua própria falta de respeito.

Talvez nos países desenvolvidos o respeito à cidadania seja consequência de uma história trágica de guerras. Quantas tragédias mais precisarão acontecer para que a sociedade brasileira comece a pensar com naturalidade nas pessoas cidadãs, conferindo-lhes em primazia? Quando isso acontecer, as enxurradas e eventos climáticos extremos persistirão, mas as mortes serão contadas em unidades.

A situação atual pode mudar. Há 15 anos nossa sociedade não se preocupava com meio ambiente; hoje a preocupação ambiental está presente no modo de pensar de todas as camadas sociais. Há 10 anos, fora do meio científico, sequer se falava em mudanças climáticas, hoje muitos pensam nisso. O reconhecimento da importância dos problemas ambientais e o trabalho da mídia ajudam na conscientização. Nossa sociedade já pensa naturalmente no meio ambiente, nas mudanças climáticas. Quando começaremos a pensar naturalmente na cidadania, no respeito à pessoa, na noção de que somos todos iguais e temos os mesmos direitos e deveres? Se reconhecermos o problema, talvez em 10 ou 15 anos tenhamos fincado as raízes das soluções para evitar a repetição de tragédias como a que choramos agora.

*Professor da COPPE/UFRJ

Artigo publicado na seção opinião do jornal O Globo, em 16/01/2011.